Jornal O Globo (18 de agosto de 1998)

Dorival Caymmi ganha nova intérprete

Jussara Silveira enfrenta (e vence) o desafio de gravar canções cujo melhor cantor é o próprio autor

João Máximo

O melhor intérprete de Dorival Caymmi é e há de ser sempre Dorival Caymmi. São raros os casos de compositor e intérprete tão integrados, como se este fosse feito para aquele e vice-versa (de certa maneira, foram mesmo). Por isso, quem quer que se aventure a cantar-lhe as canções - o que inclui seus talentosos filhos - sabe correr riscos. Há todo um quê de intransferível na música, na poesia e sobretudo no espírito de Dorival Caymmi.

Jussara Silveira, nascida em Minas mas criada na Bahia, resolveu correr os riscos em seu segundo CD. Se não chega a ser uma intérprete ideal de Caymmi, pelo menos se reafirma como grata revelação de cantora neste país em que as cantoras proliferam, quase sempre com o mesmo tipo daquilo que costumam chamar de "trabalho": discos que investem no ecletismo, tentando ser uma demonstração de força (nem sempre confirmável) de seus muitos trunfos como intérprete. Como se nos dissessem: "Vejam como eu sou formidável."

Um Caymmi vale mais que qualquer ecletismo

Jussara não se pretende eclética. Fez um óbvio ao qual nossas cantoras resistem: gravar coisa boa de um compositor bom. No caso, um compositor muito mais que bom. Se decidiu correr riscos, é por saber que nem todos os que o fazem se saem necessariamente mal. Nana, por exemplo, sempre nos dá um Caymmi de primeira. Quando o repertório é de sambas-canções (o lado menos enaltecido, mas não menor, do compositor), as chances de acertar sempre crescem. Como no Caymmi de Lúcio Alves e Dick Farney, excelentes também.

O disco de Jussara tem sambas-canções (a faixa mais bem-sucedida é a de "Você não sabe amar") e tem também peças mais arriscadas, como as canções praieiras. A cantora porta-se dignamente em todos os casos, graças à voz segura, à boa técnica (enfim, uma nova cantora que não respira mal) e à sobriedade do estilo. Há mesmo alguns momentos de altíssimo nível nessas incursões ao universo praieiro de Caymmi. "O Vento" é um. "Saudade de Itapoã" é outro.

É um disco de classe, elegante e honesto. Pouco importa que o visual de Jussara se inspire no de Zizi Possi: a voz é outra. E, afinal, CD é para se ouvir e não para se ver. Que cuidem desse detalhe os que forem escrever sobre os shows e os vídeos da moça.

Os arranjos (o encarte não diz, mas parecem ser todos de Luiz Brasil) estão à altura da cantora. Isto é, para quem não se importar com certas alterações de andamento. Por exemplo, os que podem preferir "Lá vem a baiana" menos à João Gilberto, ou "Nem eu" tão próximo dos limites do bolero. Já nos sambões, "Maracangalha" e "Adalgisa", este com ênfase nos elementos afro, tudo está no lugar certo. E o arranjo de "Horas", só com voz, violão e piano, confere à esta obra-prima - econômica como Caymmi costuma ser - uma estatura de clássico.

Jussara Silveira tem tudo para ir longe. Por ter tido a coragem de correr riscos, deixou claro que prefere investir nos grandes compositores, nas grandes canções, a seguir a moda. A desculpa de que é preciso entrar na onda do mais recente para conquistar um lugar ao sol pode ter sentido, mas não se sustenta por muito tempo.